sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Nada do que eu pensava

Passado o susto, viu que era ele quem tinha morrido. Olhou para os lados e viu seu corpo em pedaços. O desespero voi tão avassalador quanto manadas inteiras de hipopótamos (se é que se chamam manadas). Mas aí se deu conta que só poderia mesmo ter morrido. Não era fantasma, não era zumbi (para tristeza de muitos), não era alma penada, não era anjo e não estava em nenhum caldeirão. Foi atrás de outros mortos, seus bisavós, Mozart, Hitler, Lênin, Adão, Elvis, nada. Não viu ninguém, não podia gritar e nem tinha a quem pedir informação. Olhou um relógio que estava por ali e viu que ele andava muito mais rápido que o de costume. Se bem que, até onde se lembrava, não se lembrava de olhar muitos relógios. Era só uma consciência. Seu corpo deixara de existir e foi apropriado por outros vivos. Pelo que se lembrava, eram legistas. Começaram a sumir as palavras. Os idiomas das pessoas começaram a deixar de fazer sentido, embora agora conseguisse compreender um pouco da antiga escrita persa e também hieróglifos. Não notara até então, mas aqueles relógios estavam passando as horas no outro sentido. As horas voltavam, e não percebeu. Foi voltando o tempo e se acelerando, viu os romanos em sua gloriosa queda, depois seu ápice e depois sua ascenção. Viu Alexandre, o Grande, a passear pelo oriente médio, depois domando Bucéfalo. Viu os super-répteis e viu surgirem as primeiras vidas macroscópicas. Eram fascinantes. Voltou o tempo, todo o universo, ainda pequeno, até sua grande explosão. Daí tudo ficou preto. Acabou. Essa era a vida após a morte: uma breve história do tempo.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Estrofe

É como se o meu ouvir
não soubesse mais onde entrar
para me fazer aprender
que todos os meus erros
são tão pequenos
e crescem tão absurdamente,
têm consequências catastróficas,
pois muitas são as pessoas
que por bem ou por mal
fiz se interessarem
por quem eu sou
ou por quem elas acham que eu sou
(e nem eu mesmo sei mais de mim),
me esculpi nesta forma
e agora se sou sincero comigo mesmo
engano a sociedade. Vice-versa.
Aqui sou pouca rima,
aponto o dedo muito para mim mesmo.
Mas adoro falar de vocês a mim mesmo.
Falo mal, falo muito, e às vezes mando me calar.
Claro que a desobediência me é inata.
Dentro tenho minhas estrofes musicais
decassílabos e redondilhas perfeitas.
Mas nem gosto de usar. Faço por falta do que fazer.
Sou muito ocupado, é isso que sou.
Sou folgado, fico me desperdiçando.
Desgastando meus dedos, meu cérebro,
minhas retinas (que me odeiam),
meus tímpanos, coitados,
jamais tive a decência de escutar seus gemidos
uma vez sequer.
E fico fazendo rodeios
cheios de tentar me engrandecer com eles,
mas perco amigos,
perco a piada,
perco bebedeiras e festas,
deixo de encontrar algum amor,
deixo de transar,
deixo me levar sem nem perguntar
onde é que a maré me afogará.
Pois nalgum momento haverá de ocorrer:
faltará oxigênio e minhas funções vitais serão esquecidas.
Sem cerebelo, sem bulbo, sem voz, sem ar, sem marcapasso.
Sem pulso.
Mas aquele velho relógio estará lá
me lembrando de todas as horas
que ele ficou com seus ponteiros girando e girando
tentando me avisar que aquela merda de barulho
(tic tac tic tac tic tac tic tac)
é só o tempo se quebrando em pedaços cada vez menores
esmigalhados até partículas subatômicas
sem sentido e irreconciliáveis
até que deixasse de sobrar matéria alguma.
Sobraria energia, talvez.
Acho que não.
Algo tem que se perder. Nem que seja uma coisa só.
Nem que seja um coração partido.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Passa

Um dia passa.
Um mês passa.
Um ano passa.

Mas não passa
aquela velha vontade.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O outro lado

Sei que sou capaz
e que me esforço.
Tento, mas não dá.
Não sai do lugar.
Patina, desliza
e fica ali.

Vejo a loira que passa,
vejo seu balançar
mas nada além deste desejo
intrínseco do ser masculino.

Um moribundo por dentro,
uma caixa preta e vazia.
Esconde o porquê da tragédia.
Esqueceu-se de trazer consigo
o riso que guardou para a comédia.
Só se lembra dos espinhos,
mas nunca da rosa que os carregava.
Espinho não machuca flor,
sei disso.
Mas flor sem espinho, pode.
E espinho sem flor?

Jamais chorei tanto quanto
o violão de sete cordas
ou me arrepiei tanto quanto
um violino em solo a puro pranto.
Não sei onde estas coisas foram parar em mim.

Sinto tanto as dores de uns
mas não sei onde me guardo.