sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Intocável e Imortal

Sentou-se. Não conseguia fazer absolutamente nada. Era extremamente terrível a sensação de niilismo que o abatera. Perdera a vida, ela lhe escorria por entre os dedos, seu relógio certamente havia parado. Todos os sons, pareciam-lhe apenas barulho. Não havia nada simples. Tudo parecia terminantemente terrível, a vida, sonhos, pessoas, mundo, convivência, conveniência também.

Em verdade, não sei ao certo o que aconteceu. Havia qualquer coisa que não significasse vida nos olhos de Carlos. Carlos Magalhães Lima era seu nome completo. Ultimamente, por razoes desconhecidas, ou mesmo pela falta de qualquer razão, Carlos se entregara à vida. Vivia sem alegria, sem vida, sem morte, de modo que mesmo a idéia da morte não o incomodava em absoluto. Para ele, não era a morte a angustia de quem vive, mas a vida, o comum, as pessoas, o ambiente que ele ou qualquer outro freqüentava. Não agüentava mais nada, nada lhe pesava, nada lhe abatia, nada lhe erguia; era um anônimo. Mais ainda, era um nada, um conjunto vazio.

Há quem diga que foi amor, ou que foram drogas, ou que não foi nada, que sempre fora assim. Verdade sendo, disfarçava extremamente bem. Nunca fora assim, não. Foi do tipo que brigava, não à toa, mas pelo que lhe significava algo, mesmo sendo simples. Brigava por uns centavos, mas também brigava por qualquer decreto que lhe feria a hombridade, honra ou a liberdade.

Não importa. Voltemos à parte que trata da sua falta de vida. Alias, não é correto dizer que lhe faltava vida. Faltava morte, que é a morte que nos dá a vida. Vivemos para morrer, e assim aproveitamos enquanto a morte não vem. É como quando estamos na casa de nossa avó, esperando nossos pais nos buscarem, e aproveitamos a companhia dos nossos primos e a boa comida, característica das avós. Faltava-lhe a morte, era isso. Morte? Morte... pela primeira vez essa palavra lhe pareceu atrativa. E por que não? Sempre fora curioso quanto a isso. Quanto a tudo, mas especialmente as coisas que jamais poderão ser explicadas, sendo sempre muito mais fã das interrogações do que exclamações.

Decidiu morrer. Escreveria. Com certeza a maioria não compreenderia, não aceitaria, preferiria outro fim, mas não iria ou deixaria de ir por motivos de outros. Tentaria explicar ao maximo, sem esperança de confortar alguém; algum ser - humano seria capaz de compreendê-lo, sentiria como ele. Teria, agora, de planejar tudo, pensar em como partir, pensar em como evitar que qualquer um descobrisse, em se manter anônimo, evitar noticia espalhafatosa. Havia muito que ser feito. Não deixaria tudo correr solto.

Pensou muito em “como”; deixou o “quando” para depois, por ser o menos importante na situação. Preferiu evitar as mais longas e dolorosas, por motivos óbvios. Nada que chamasse atenção. Numa tacada só, descartou: pular de um prédio, afogamento, fogo, enforcamento. Pensou em venenos, mas preferiu algo que fosse pelo menos excitante, inebriante. Como já disse, não era falta de vida o problema. Pelo visto, o “como” passou a ser a parte mais complicada e delicada, a mais detalhadamente pensada.

Um dia, divagando e caminhando pela noite, viu algo que com certeza, foi fundamental para todo o resto, para o fim. Enquanto voltava de ônibus para casa, onze da noite, logo após dar uma nota de cinqüenta reais para um anônimo, viu outro anônimo sacando uma arma e usando-a para intimidar uma terceira pessoa, que certamente ficou intimidada, fazendo-a entrega-lo todos os pertences. Carlos pensou: por que não?

Por que não desafiar a morte daquele jeito? Seria necessária muita coragem, mas com certeza, também seria necessária coragem para qualquer outra opção. Decidiu andar mais vezes tarde da noite, em lugares propensos à criminalidade. Seria interessante, testar os limites de uma pessoa, avaliar o grau de nervosismo da mesma. Poderia ser que tudo saísse errado também. Poderia perder para sempre a chance de acabar-se. Não, não perderia a chance, apenas demoraria mais. Mas preferia, certamente, um tiro no coração a um tiro na espinha.

Foi numa dessas caminhadas que um ser, esguio, num moreno pálido, com um bigode ralo e uma mecha dos cabelos extremamente crespos descolorada, abordou-o. Não tinha absolutamente nada em suas mãos alem dos calos e das marcas dos ossos, da falta de carne. Parecia, em verdade, um zumbi, mais morto - vivo do que Carlos. Parecia viver por um impulso que não seria outro senão algum tipo de entorpecente. Pediu dinheiro a Carlos, que recusou. Pediu agressivamente dinheiro a Carlos. Pediu com ameaças dinheiro a Carlos, que constantemente recusava, indiferentemente, sem intempéries ou demonstração de que iria ceder. Um dos dois, Carlos ou o homem, cederia, e Carlos continuava caminhando, dizendo que não. O homem fez menção de chamar alguém mais, mas percebeu que a rua estava completamente deserta. Mas como? Seus amigos estariam esperando ali, para caso de encrenca. O outro cedeu.

Num outro dia, não teve a mesma sorte. Foi abordado por um baixote que estava mais nervoso do que se estivesse pedindo um beijo a primeira namorada. Devia ser a primeira vez, e não tinha mais que nove anos. Isso certamente comoveria ou encheria de ódio algum cidadão normal, mas não Carlos, que não se importava mais, mas começava a se preocupar com o fato de que talvez não conseguisse desafiar a morte.

Num dia extremamente quente, úmido e pegajoso, resolveu andar. Não se importava com nada, mas desagrados físicos realmente faziam Carlos sentir algo, mas algo não mais do que desconforto, e isso o fazia andar, sair, mover-se. Coincidentemente, passou uma moto preta, bem descuidada, em alta velocidade por ele. Algo em torno de 20 segundos depois, surge a mesma moto, com dois homens claramente armados com pistolas automáticas, talvez de calibre 9mm. Faziam pressão para que ele desse tudo que estava carregando, inclusive o par de tênis que usava. Um frio gelado caminhou vagarosamente pelas costas. Logo depois, um calor penetrante percorreu o mesmo caminho. O abdômen pareceu-lhe que estava envolto em um bloco de gelo, e se contraia. Tudo isso não durou 1 segundo completo. Veio a parte pensante a controlar-lhe todas as sensações. Sentiu agora, um calor confortável que lhe dava uma agradável sensação de controle da situação.

Os dois homens freneticamente pediam-lhe tudo, avisando que não hesitariam em disparar a arma, e que não se importavam em matar um a mais ou um a menos. Matá-lo-iam, diziam. Para algum leitor desatento, observe que agora uma pontada de qualquer humanidade penetrou o corpo de Carlos. Carlos fez transparecer um misto de indiferença, niilismo e desafio. Quando os homens engrossavam o tom de voz, Carlos fazia se sentir indiferente; quando os dois lhe intimidavam fazendo-lhe ameaças, ele crescia, parecia tomar proporções gigantes, e os dois revidavam, crescendo ainda mais, ajudados pelo porte das armas. Ganhavam então, novamente a indiferença. A indiferença ora deixava-os terminantemente odiosos, e nessas horas tinham certeza de que haveriam de matar Carlos; ora, deixava-os insignificantes, temerosos ante um ser que ignorava qualquer desafio ou instinto de sobrevivência. Quem seria esse maldito homem que não teme ser levado pela dama de preto, infalível e impassível? Por que não tinha medo? Diacho.

Passavam carros e mais carros próximo a eles. Acho que todos sentiam que havia uma fumaça preta em volta daquela moto e daqueles homens. Era preta, mas invisível, como uma vertigem, que se vê, mas quando passa a tontura, percebe-se enganado e tudo parece então limpo, claro.

Carlos permanecia impassível. O seu coração, no entanto, começava a acelerar, gradativamente. Sentia cada vez mais um misto de alegria, medo. Medo, não, era mais adrenalina. Sentia-se numa montanha russa, mas mais alta do que qualquer pessoa jamais imaginara. Sempre, entretanto, tentava controlar tudo isso. Não podia parecer humano, não a esta altura do campeonato. A tensão aumentava entre os três. Os dois homens já começavam agora a divergir. Não tinham mais aquele velho plano que sempre funcionara. Cada um queria agir de acordo com a sua índole. Não tinham mais um objetivo comum. Nesse momento, já quase disputavam entre si quem conseguiria obter os pertences desse... desse verme!

Era o fim. Decidiram então por fim que iriam embora, mas não iriam de graça. Fariam qualquer coisa com o rapaz. Um sacou a arma, apontou-a. Ouviram uma sirene, ou pensaram ouvir. Escondeu rapidamente a arma, que acidentalmente disparou aleatoriamente. Todos se assustaram. Por sorte, Carlos paralisava em momentos de susto. Passados três segundos, se controlou. Os dois fugiram. Não sabem por que. Não era intenção chamar atenção, mas que rapaz maldito!

A caminho de casa, Carlos pensou um pouco. Não sabia se tivera sorte ou azar. Queria realmente testar o limite das pessoas, testar o seu limite. Testou ambos, não atingiu o principal objetivo, mas estava se sentindo absurdamente bem. Sentiu-se alto, inatingível, intocável. Sentiu-se como o Al Capone, como o Michael Corleone. Viveu, voltou a sentir. Desafiou-se. Não sabia o que sentir. Sentia apenas que seu corpo não poderia ser atingido, sentou na calcada e esperou, por nada. Esperou pela morte, mas não a queria mais. Mas queria continuar daquele jeito, inatingível. Para isso, precisava não sentir a morte, caminhar lado a lado com ela e não a reconhecer. Não fez mais nada o dia inteiro. Absolutamente nada. Fazer o que? Nada traria de volta aquela vontade incomensurável de ser parte do vácuo, do vazio. Voltou aquele niilismo. Sentiu-se feliz, e não sentiu nada.

Danilo Brito Steckelberg,

Campinas, 13 de setembro de 2007.

Um comentário:

Abelardo Penteado disse...

Existem textos grandes, cansativos, chatos e previsíveis. Nesse aí você foi apenas grande. E leia grande como algo maior do que extenso. Parabéns, um ótimo texto!