sexta-feira, 17 de julho de 2009

Amor próprio

Acordei. Levantei com aquela cara toda amassada, com um gosto horrível na boca. Hoje nem era dia de acordar; melhor mesmo era ter ficado dormindo. Mas não consegui. Fui em direção ao banheiro, e já senti que haveria um desentendimento. Olhei aquele estranho pela janela que dizia coisas horríveis. Por Deus, eu devia estar dormindo mesmo, que nem janela era; falava eu ao espelho. Como poderia, entretanto, dizer tantas asneiras que eu jamais seria capaz de concordar?
Decidiria que ficaria o dia todo sem falar com este estranho de cara amassada - que era eu. Nem em pensamento. Eu daria uma trégua de mim mesmo, era esse o meu castigo. Saí de casa com todas as minhas coisas. Totalmente em silêncio, nem uma palavrinha, e tudo um breu em minha mente, para não correr o risco de fugir do castigo. E foi realmente difícil não tecer nenhum comentário quando vi aquela linda mulher atravessar a rua, como que ignorando os carros, que de modo algum poderiam ignorá-la.
Mas tive que me segurar. Ela era linda, mas eu merecia. Foi então que resolvi andar mais rápido, para prestar atenção nos meus passos bem ritmados. Sou sem ritmo de tudo, não consigo nem cantar os parabéns que já atrapalho todos os outros com minhas palmas fora do compasso. Mas para andar, tenho um ritmo muito forte. E isso me distrairia.
Nem percebi como eu era teimoso. Queria mais que tudo falar-me, mas não podia. Não devia. Mas eu queria. Não sei quem foi o louco que disse que louco é quem fala consigo mesmo. Travo diálogos brutais e intermináveis diariamente comigo, penso no mundo e penso comigo mesmo, para não me sentir muito sozinho. Assim, tenho um diálogo, pois até que sou bom ouvinte. A parte que pode me fazer passar por louco é que eu nem sempre concordo comigo. Ou é que gosto de ser meu advogado do diabo, e é isso que nos trouxe até esse ponto. Um auto-desentendimento de proporções homéricas. E eu nem lembrava mais o que eu tinha dito. Estava sonolento, só sei que foi horrível.
E sou tão teimoso que mesmo não me lembrando continuo meu voto de silêncio, se é que pode ser chamado assim. Mas percebi que passei a me conhecer um pouco melhor. E acabo por me apaixonar mais por mim mesmo a cada minuto que passo longe de mim. Acho que tenho um relacionamento como se fosse um namoro; às vezes preciso de um tempo de mim mesmo. E é sempre difícil, mas necessário.
Volto para casa, me recomponho, abro uma cerveja bem gelada, faço um brinde - que beber sem brindar, sete anos sem transar - pergunto como foi o dia, e aquele (ainda) jovem ao espelho só me diz: "solitário". Me arrependo, mas ainda assim achei necessário o que fiz. Bastou um gole da gelada para tudo voltar ao regime permanente de todos os dias, fizemos as pazes, e até me admirei um pouco no espelho. Eu parecia diferente, pois, como dizia Raul, a chuva voltando pra terra traz coisas do ar.

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