terça-feira, 30 de março de 2010

Memórias da Cidade

É como se eu tropeçasse
Em versos de camões
E caísse de boca em cima
Das poesias de Neruda.

É como se andando é que
Eu saberia a origem de meus pensamentos
E a finalidade a que eles me prestam.

Já sinto sob meus pés
No asfalto quente
Vômitos de palavras ancestrais
E imagens tão antigas
Quanto são as histórias que poderiam contar.

É como se debaixo da chuva
Houvesse um mar e houvesse reflexo
Da lua e de suas almas penadas,
Fantasmas e poetas que, embriagados,
Tentaram abraçá-lo e se afogaram.

E são destes e outros
Que se fazem as lendas
Que são esculpidas não em pedras,
Mas em memórias sedentas
Por mais e novas lendas,
Mesmo que a princípio descrêem-nas.

E se prendem as lendas,
Elas soltam-se.
Não há grilhões que possam machucá-las,
Pois são apenas palavras,
E nada mais.

E em cada canto desta cidade
Em que a luz vacila, as lâmpadas
Pedem socorro e as pessoas
Se afundam em medos,
Há destas e muitas outras lendas,
Vomitadas e esculpidas nas pedras,
Nos tijolos, no asfalto,
Nos ouvidos e nos uivos
De quem se faz ouvir.

Se não são estes os gritos da liberdade,
Que então sejam algum grito desesperado
De qualquer espécie.
Por que gosto do que tem raiva,
Gosto da música que explode,
Gosto das pessoas que se revoltam,
Gosto dos filmes que me tiram o sono,
Gosto de livros que me tragam.
Gosto de intensidade.
E isto é o que precisamos.
Pelo menos os que são como eu
(não posso dizer por todos),
Se é que alguém é como eu.

Enquanto a chuva não se acanha
Continuo a perceber à minha volta
Detalhes guardados bem debaixo da banalidade,
Vejo a poeira debaixo das solas das pessoas,
Vejo que todas escondem demais,
Escondem que escondem
E assim acabam por se esconder de si mesmas.

Vejo que não há cidade grande.
Vejo, em verdade, que não há cidade.
Só o que vejo são sombras,
São formas que não fazem sentido,
São esconderijos,
Pois é o medo que assola
E que nos governa nestes dias.

Enquanto Gotham é salva pela fantasia
Nos perdemos na fantasia
De que não há nada,
Que nada está errado.
Somos o que somos, e somos grandes.
Mas não é o que basta.
Nossa máscara quer nos fazer mocinhos
Enquanto guardamos os bandidos pequenos
Que somos.

E nem a música mais é capaz de nos salvar.
Nem os dois pares de ás na mão,
Nem o limite de nossa conta bancária,
Nem os empréstimos a baixos juros,
Nem os bons e justos,
Nem a simplicidade,
Nem as colheitadeiras,
nem as luzes da cidade,
nem as armas de fogo,
nem os eixos de coordenadas e a matemática,
nem copos e mais copos de café,
nem mesmo a chuva ácida.

E Camões e Neruda,
Que cantavam amor,
Essa noite de chuva é sua,
E este brinde é a vocês.
Guardiões da última esperança,
Tomara que a última palavra
Sejam as palavras tuas!

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