sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

A Passagem

Sentia-se velho e estava atado a todo tipo de amarras: seu corpo estava sufocado pelos tubos, sua mente pela morfina e sua alma pelo medo do que se seguiria àquele dia - provavelmente, sentia, seu último. Ouvia o lento barulho do medidor de batimentos cardíacos ao seu lado soltando sons infernizadoramente agudos para um velho, mas tinha ouvidos catarados e quase não ouvia nada - o que não deixava de ser um murmurinho incômodo. Não entendia nada do que estava acontecendo, na verdade. Seu cérebro tinha plena consciência da doença, sabia quais eram as causas e o que danificava seu corpo, tantas vezes os médicos lhe explicaram, mas a mensagem se perdia em algum caminho e os leucócitos agiam de forma totalmente irracional. Já tinha tido uma parada cardíaca e até tinha morrido, mas ressucitaram-no. Lembrou-se da morte. Na verdade, só lembrou que tinha morrido, por que da morte em si, nunca poderia se lembrar. Essa era a lei, esse era o combinado. Mas isso o dava ainda mais medo. Se não se lembraria depois, era como se viver já fosse a própria morte e morrer seria morrer para sempre, mesmo que se voltasse depois. Pensou naquelas malditas bactérias manifestando-se, seres de milionésimos de milímetros fazendo chorar de dor um homem de um e oitenta, forte outrora como um touro. Ouviu os médicos chegarem, estudarem o caso e conversarem, mas as conversas não faziam muito sentido, nomes estranhos e uma dose de morfina ainda recente circulando seus vasos podem distorcer muitas palavras. Ficou com preguiça de ouvir tudo aquilo. Ficou com preguiça de ver as coisas como elas não são. Em outros tempos, daria tudo para ver o mundo sob a psicodélica ótica da morfina, mas agora parecia que entupia-se de lixo. E lixo é o que jamais deveria ser, é o que jamais seria.
Parou. Parou de bater, só havia o barulho constante do medidor de batimentos, nada de pulsos, de sons intermintentes. Entreolharam-se os médicos, estupefatos, não entendendo nada. Estudavam aquele caso como uma recuperação estupenda da doença em questão, nunca antes vista, e de repente, sua cobaia falece sem nem ao menos dar explicações. Um minuto antes, nosso bom velho tinha a mente longe. Viu que a vida não passava como um filme. Na verdade, só passou uma cena em sua cabeça: uma imagem falsa do homem pisando a lua, totalmente criada por sua mente. Nada mais. Depois se lembrou de como achava que as pessoas morriam quando era criança: levantando as mãos e rodopiando e se balançando até caírem no chão mortas. Achou que seria divertido. Levantou as mãos, se contorceu todo e desistiu de viver. Parou, parou de bater. Jogou fora o resto de seu sofrimento apenas desisitindo. Finalmente seu corpo entendeu os sinais conscientes de seu cérebro.

Nenhum comentário: